Gerivaldo
Neiva *
Ontem
foi domingo e me droguei muito. Comecei por volta das 13h e só fui
parar depois das 22h. Éramos uns poucos amigos e amigas, casais
amigos, e quase todos se drogaram também. Uns mais e outros menos.
Petiscamos durante o dia e só no final da festa é que resolvemos
comer algo mais consistente. Sorrimos muito e também tivemos
momentos de conversa séria. Eu, por exemplo, quando me drogo, tenho
momentos de euforia e de silêncio. Passo horas ouvindo as pessoas e
outras horas com o olhar perdido. Depois, peço desculpas e retorno à
euforia e boas risadas.
Um
desses meus amigos gosta muito de misturar e reclama que não está
sentindo nada, embora todos os demais percebam seu visível estado de
euforia. Outro amigo tem sempre um copo de água ao lado, mas poucas
vezes bebe a água. Outro tem o ciclo bem rápido e em poucas horas
passa da sobriedade para a euforia, silêncio e sono; depois, quando
os demais ainda estão na fase da euforia, ele já está
completamente recuperado e começa do zero. Outro não come nada e
justifica que se comer não consegue continuar se drogando e sente
muito sono. Outro, ao contrário, tem sempre um prato de petiscos ao
lado e justifica que não consegue se drogar sem comer. Outro, talvez
só eu saiba disso, provoca vômito cada vez que vai ao sanitário
para continuar se drogando e parecer sóbrio.
Drogas
são drogas e ponto final. Todas elas alteram nossa percepção
sensorial e, em consequência, a forma de ver o mundo. Esta relação
das drogas com cada pessoa é única. Drogas é uma coisa e o efeito
delas é algo absolutamente pessoal. Busca-se, portanto, algo entre a
pessoa e a droga. Este algo é único e individual e reflete
exatamente a história da pessoa com os efeitos da droga. Então,
como cada um tem sua própria história, a relação dessa história
com a droga também será uma história própria. Por causa disso,
uns usam drogas apenas uma vez e não gostam, outros conseguem usar
por muitos anos e não se tornam dependentes e outros não conseguem
mais parar de usar depois da primeira experiência, tornando-se um
usuário dependente.
Independentemente
do caráter de legal ou ilegal, lícita ou ilícita, todas as drogas
são drogas e estabelecem as mesmas relações com o usuário, pois
não sabem se são permitidas ou não. Assim, o uso do tabaco pode
causar um profundo bem estar ao fumante, embora possa causar inúmeros
tipos de câncer. Da mesma forma, o álcool pode oferecer alegria e
euforia e, ao mesmo tempo, causar uma infinidade de problemas à
saúde de quem ingere álcool. Adentrando às drogas consideradas
ilícitas, a cocaína pode causar sensação de autoconfiança e
poder, mas pode também comprometer a saúde de quem cheira ou
injeta. Também a maconha pode relaxar e proporcionar viagens leves e
lentas, mas também pode causar mal à saúde de quem fuma. O ponto
comum é que todas as drogas podem causar a dependência e se tornar
um problema para o usuário, seus familiares e comunidade. No fim, o
problema a ser enfrentado e discutido é por que alguns usuários se
tornam dependentes e problemáticos e outros não. Sendo assim, como
jamais conseguiremos acabar com as substâncias que alteram nossa
percepção sensorial, interessa muito mais entender a mente humana,
as tragédias pessoais e a desigualdade social do que proibir e
criminalizar as drogas.
Pensando
assim, fico a me perguntar, qual o fundamento jurídico, legal,
histórico, filosófico, moral, religioso ou de qualquer outra
natureza para considerar marginais e bandidos pessoas que usam algum
tipo de droga? E mais, também me pergunto, por que as drogas
fabricadas pela indústria capitalista, a exemplo do tabaco, álcool,
ansiolíticos e antidepressivos, são consideradas lícitas e,
inexplicavelmente, as drogas que não passam pela indústria
capitalista são consideradas ilícitas, a exemplo da maconha e
cocaína? Será, por fim, que o detalhe em comum seja exatamente
este: a indústria capitalista?
Voltando
ao começo, ontem fiz um churrasquinho em casa e convidei os amigos
para matar a saudade, jogar conversa fora, comentar os jogos da Copa
no Brasil e as consequências na campanha política, lembrar das
aventuras passadas, dos tempos difíceis, empanturrar de carnes e,
principalmente, tomar muitas cervejas. Abasteci o freezer com algumas
caixas de cerveja, preparei costelinhas de porco e carneiro com toque
final de alecrim; coração de frango, coxinhas da asa de frango,
costela de boi ao forno com papel alumínio, calabresa mista
apimentada (uma delícia!) e, como não poderia deixar de ser,
saborosas picanhas com dois dedinhos de gordura. Na manhã seguinte,
como sou de carne e osso, tinha as mãos trêmulas, boca seca,
dificuldade de raciocinar e uma sede insaciável, ou seja, estava de
ressaca.
Sei,
por fim, que no mesmo domingo milhões de pessoas fizeram a mesma
coisa e outros milhões usaram drogas consideradas ilícitas. Muitos,
como eu, trabalharam normalmente no dia seguinte e outros, não tenho
dúvidas, por conta exatamente de sua relação com as drogas,
continuaram usando abusivamente e causando problemas à sua família
e comunidade.
No
mais, é muito provável que muitos policiais militares, que poderiam
estar presentes em algum churrasco e provavelmente também de
ressaca, resultado das cervejinhas do domingo, irão prender em
flagrante jovens pobres, negros, periféricos e excluídos com
pequenas porções de maconha ou crack, conduzindo-os a algum
delegado, também de ressaca, que irá indiciá-lo, mais pela cor da
pele e condição social, como traficante de drogas. Em
seguida, algum representante do Ministério Público, também
participante do churrasquinho do domingo, irá representar pela
prisão preventiva com fundamento puro e simples na “garantia
da ordem pública”e, por fim, seu destino será escrito
indelevelmente como acusado por tráfico de drogas quando as mãos
trêmulas e boca sedenta de algum juiz de direito lhe decretar a
prisão preventiva e lhe esquecer na prisão.
Domingo
que vem tem mais churrasco com os amigos, muita cerveja e ressaca na
segunda-feira, mas também terá muita galera fumando maconha,
cheirando cocaína e fumando pedras de crack. A diferença é que
uns, por conta da droga usada, cor da pele e condição social, serão
presos e condenados e outros, enquanto cidadãos respeitáveis,
tomarão um engov ou epocler e assinarão mandados de prisão.
* Gerivaldo Neiva é Juiz de Direito (BA), membro da
Associação Juízes para
a Democracia (AJD),
membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação
dos Magistrados Brasileiros (AMB)
e Porta-Voz no Brasil do movimento Law
Enforcement Against Prohibition (Leap-Brasil).